22.9.21

Que farei com este azul que me beija (poética Editora, 2021)



Por que insistes em traduzir o mundo?

Para que queres ser-lhe fiel

se te é infiel e hostil até à náusea?

A ruína o desencanto a perdição

alimentados sem pudor a cada dia

Para quê?


Houvesse artífice capaz de o

consertar

reinventar-lhe um corpo são,

um coração de princípios outros.

Enàs fontes,

à sua voz de água magoada,

devolver a cadência das trovas

antigas.


Houvesse como

curar os olhos dos homens

doentes de urbanismo, de alienação,

de crueldade...


E tu que fazes, Poesia,

enrolada nesse xaile escuro, qual

noite?

Não vês como te esperam?

Há quem te saiba ave e alvorada

quem te queira berço, colo, morada.


Vem encher de barcos iluminados

o mar negro da minha inquietação.


Lídia Borges 

Venha


Vamos celebrar a estupidez humana

A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos covardes
Estupradores e ladrões

Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado que não é nação
Celebrar a juventude sem escola, as crianças mortas
Celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Persefóne e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade
Vamos comemorar como idiotas
A cada fevereiro e feriado
Todos os mortos nas estradas
Os mortos por falta de hospitais

Vamos celebrar nossa justiça
A ganância e a difamação
Vamos celebrar os preconceitos
O voto dos analfabetos
Comemorar a água podre e todos os impostos
Queimadas, mentiras e sequestros
Nosso castelo de cartas marcadas
O trabalho escravo, nosso pequeno universo
Toda a hipocrisia e toda a afetação
Todo roubo e toda indiferença
Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir, não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar o coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo que é gratuito e feio
Tudo o que é normal
Vamos cantar juntos o hino nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão!

Mas venha! Vem chegando a primavera!

Nosso futuro recomeça...

Ai. Jesus...