15.10.21

Escrevências Inventosas

 


Pelo minguado espaço da esperança eu enxerguei o mundo. O céu parecia nebuloso, longe de ser alcançado pelo meu olhar aquebrantado, despido de coragem. Acordei sozinha, vi a pele ser rasgada pela frieza do abandono, as horas pirraçavam, os ponteiros teimavam em não sair daqueles instantes que perpetuavam a lenta agonia. Caminhei com uma fadiga que peava as forças de minhas pernas, senti o tempo pesar nas panturrilhas cansadas de tantas desistências.

A porta emperrada do guarda-roupa, a escrivaninha desarrumada, a penteadeira repleta de frascos vazios – a vida se fazia inteiramente desabitada de mim. O robe cobria meu corpo, através do tecido senti a pele quente -, mas dentro de mim o silêncio reverberava e se transformava num frio intenso, congelante. Inútil saber que lá fora o dia me chamava, ordenava que as janelas fossem escancaradas e que as cortinas esvoaçassem, dançassem um ballet cheio de ternura – eu permanecia prostrada na apatia de uma solidão que limitava minha dança – travei a vida em um “grand plié”, difícil retornar e voar para a imensidão de um “Jeté” que me liberte de todas as barras.

Na escrivaninha as bolas de papel amassado emprestavam um ar de revolta, minhas mãos se recusavam a escrever o que não transformasse o mundo, rejeitavam-se a perpetuar pequenas bobagens, filhas de palavras sem sentido. Carecia gritar no papel que as traças carcomiam pequenas ternuras escondidas embaixo da poeira que camuflava os livros de poesia - alisava as lombadas cheias de pó e deixava o quarto ser invadido por um súbita dança - na luz, que entrava pela fresta ousada, antigas dores pairavam no ar.

Naquela hora vi uma coragem insana voar na claridade intrusa, escuridões antigas se recolheram atrás do velho guarda-roupa, as panturrilhas cansadas começaram a bombear a vida de volta para mim – andei, capenga ainda, mas inteira de minhas certezas. Na mão levei a poesia já livre da poeira de solidões passadas e, sem abrir o livro, minha cabeça leu o que estava escrito naquelas páginas: “As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios” – pelo minguado espaço da esperança eu enxerguei o mundo.


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8.10.21

Luís de Camões



 Um mover  de olhos, brando e piedoso,

Sem ver de quê; um riso brando e honesto,

Quase forçado; um doce e humilde gesto,

De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;

Um repouso gravíssimo e modesto;

Uma pura bondade, manifesto

Indício da alma, limpo e gracioso;

Um encolhido ousar; uma brandura;


Um medo sem ter culpa; um ar sereno;


Um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura

Da minha Circe, e o mágico veneno

Que pôde transformar meu pensamento.




6.10.21

I Want to know what love is



 

Michael Dandanell- Hungry Eyes



 

Cry to me- Michael Dsndanell



 

Não precisa



 

Jeito de mato





 

As ensinanças da dúvida

 


Tive um chão (mas já faz tempo)

todo feito de certezas

tão duras como lajedos.


Agora (o tempo é que fez)

tenho um caminho de barro

humedecido de dúvidas.


Mas nele (devagar vou)

me cresce funda a certeza

de que vale a pena o amor.


THIAGO DE MELLO (Brasil, 1926-  )

in: "Mormaço na floresta"



 

 



4.10.21

DENTRO DAS IMAGENS

 


 Os poemas têm veneno na boca.

 

Na estrada da minha vida

plantei a árvore

sem saber quem era.

 

Em que parte do planeta

há mais ódio? A matéria

erosiva transforma o corpo

e não há regresso. Não

restará um monte de estrume.

 

Em todo o lado

parece que o mundo em desordem

pouco a pouco enlouqueceu

e os homens atam a corda

à espera de que aconteça.

 

São infelizes

mas não o suficiente.

Não sabem dizer

por que se esquecem de amar


Isabel de SáO fim da estrada é uma cova em O real arrasa tudo (Elogio da sombra, 2019)