31.1.22

Intervalo

 


 Quem te disse ao ouvido esse segredo

Que raras deusas têm  escutado

Aquele amor cheio de crença e medo

Que é verdadeiro só  se é segredado?

Quem to disse tão cedo?


Não fui eu, que te não ousei fazê-lo.

Não foi um outro, porque o não sabia.

Mas quem roçou da testa teu cabelo

E te disse ao ouvido o que sentia?

Seria alguém, seria?


Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?

Foi só qualquer ciúme  meu de ti

Que o supôs  dito, porque o não  direi,

Que o supôs feito, porque o só  fingi

Em sonhos que nem sei?


Seja o que for, quem foi que levemente,

Ao teu ouvido vagamente atento,

Te falou desse amor em mim presente

Mas que não  passa do meu pensamento 

Que anseia e que não  sente?


Foi um desejo que, sem corpo ou boca,

A teus ouvidos de eu sonhar-te disse

A frase eterna, imerecida  e louca

A que as deusas esperam da ledice

Com que o Olimpo se apouca.


Fernando Pessoa




Flavio Gikovate

 

"O coração tem razões 

que a razão conhece"

Fernando Pessoa



 Confusa essa pessoa! rs...

26.1.22

O meu condão

 


Quis Deus dar-me o condão 

de ser sensível 

Como o diamante  à luz que o alumia,

Dár-me uma alma fantástica,  impossível 

Um bailado de cor e fantasia!


Quis Deus fazer de ti a ambrosia

Desta paixão estranha, ardente, incrível!

Erguer em mim o facho inextinguivel,

Como um cinzel brincando uma agonia!


Quis Deus fazer-me tua...para nada!

Vãos, os meus braços de crucificada,

Inúteis,  esses beijos que te dei!


Anda! Caminha! Aonde?... 

Mas por onde?...

Se a um gesto dos teus a sombra esconde

O caminho de estrelas que tracei...


Florbela Espanca





 

23.1.22

A RECRIAÇÃO DA LUZ 



 Chegou triste

com olhos velhos

tinha febre frio e medo

um jeito distante

como distante trazia

o corpo (quase arrastado) 

foi-se aninhando

pássara assustada

(os olhos velhos velhos) 

um soluçar de antigos 

sofrimentos

lágrimas de paixões 

nunca esquecidas

homens suados

prazeres 

inteiramente só

a cabeça baixa

cabelos caindo no rosto

braços cruzados sobre o peito

e os olhos velhos 

falei de barcos e fugas

da atração da morte

e das mulheres esplêndidas

que nunca cruzaram

a esquina do meu coração 

tomou leite quente

algum conhaque

depois falou de angústias 

e traições

e sem saudade (até sorrindo)

lembrou de um passado 

inesquecível 

tinha medo do passado e do presente

(do futuro não falou) 

 

recordou sabores nunca renegados

mas que jamais mataram sua sede 

 

isto tudo falou assim

até que lhe beijasse os olhos

úmidos e velhos 

despediu-se com um ar distante

(como se não tivesse chegado)

apenas olhava o sofá a taça vazia o cinzeiro

e nos olhos velhos

havia o pedido

de um instante a mais 

então beijou-me

beijou-me um beijo lento

(menos que um beijo,

mais uma procura ) 

o beijo escorreu da boca

e foi descendo até os pés

e ali

ao som de uma canção antiga

(na certeza de que não iria faltar cigarro)

entre as roupas que foram

lentamente

recobrindo o assoalho da sala

eu vi

nela toda

acender-se uma luz 


PAULO JOSÉ CUNHA

RECEITA


 não é por onde o sim

é ser por onde o não

desconser/tente o vácuo

experimente o salto:

(invente)

 

arquitetando acerte

o alvo errante

mas não se sente – avance

e desinvente o salto

até cravar o dente

na flor do instante

(tente)

CANÇÃO DE OUTONO

  Perdoa-me, folha seca, não posso cuidar de ti. Vim para amar neste mundo, e até do amor me perdi. De que serviu tecer flores pelas areias ...