23.1.22

A RECRIAÇÃO DA LUZ 



 Chegou triste

com olhos velhos

tinha febre frio e medo

um jeito distante

como distante trazia

o corpo (quase arrastado) 

foi-se aninhando

pássara assustada

(os olhos velhos velhos) 

um soluçar de antigos 

sofrimentos

lágrimas de paixões 

nunca esquecidas

homens suados

prazeres 

inteiramente só

a cabeça baixa

cabelos caindo no rosto

braços cruzados sobre o peito

e os olhos velhos 

falei de barcos e fugas

da atração da morte

e das mulheres esplêndidas

que nunca cruzaram

a esquina do meu coração 

tomou leite quente

algum conhaque

depois falou de angústias 

e traições

e sem saudade (até sorrindo)

lembrou de um passado 

inesquecível 

tinha medo do passado e do presente

(do futuro não falou) 

 

recordou sabores nunca renegados

mas que jamais mataram sua sede 

 

isto tudo falou assim

até que lhe beijasse os olhos

úmidos e velhos 

despediu-se com um ar distante

(como se não tivesse chegado)

apenas olhava o sofá a taça vazia o cinzeiro

e nos olhos velhos

havia o pedido

de um instante a mais 

então beijou-me

beijou-me um beijo lento

(menos que um beijo,

mais uma procura ) 

o beijo escorreu da boca

e foi descendo até os pés

e ali

ao som de uma canção antiga

(na certeza de que não iria faltar cigarro)

entre as roupas que foram

lentamente

recobrindo o assoalho da sala

eu vi

nela toda

acender-se uma luz 


PAULO JOSÉ CUNHA

RECEITA


 não é por onde o sim

é ser por onde o não

desconser/tente o vácuo

experimente o salto:

(invente)

 

arquitetando acerte

o alvo errante

mas não se sente – avance

e desinvente o salto

até cravar o dente

na flor do instante

(tente)

11.1.22

MEU AMOR




 Meu amor, meu amor

meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu 
punhal a escrever
nós parámos o tempo não 
sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu pássaro cinzento,
a chorar lonjura,
do nosso afastamento.

Meu amor meu amor
meu nó de sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento
este mar não tem cura 
este céu não tem ar
nós parámos o vento não 
sabemos nadar
e morremos morremos
devagar
   devagar...

 ARY DOS SANTOS

Saramago

 





 

Elvis