3.11.21

ESTRANHO FULGOR

 


Deu-me Deus bodas vermelhas

E palavras como abelhas

Esquecendo-se de mim.


Deu-me a paz de alguns minutos

E palavras como frutos

Esquecendo-se de mim.


Deu-me as ideias formosas

E palavras como rosas

Esquecendo-se de mim.


Deu-me a voz que persuade

Muito mais do que a verdade

Esquecendo-se de mim.


Mas um dia, veio a dor

Veio o castigo sem fim

Veio este estranho fulgor

Apartando o bem do mal

E vi que Deus afinal

Já se lembrava de mim...


PEDRO HOMEM DE MELLO

AMIGO

 


Porque vejo nos teus olhos

sem os ver

Porque sinto a tua presença

sem a ter

Porque me escutas

sem me ouvires

Porque me afagas

sem me tocares

Porque me olhas

sem me ver

Porque derrotas

a minha solidão

Porque me iluminas

quando há escuridão

Porque és

Verdade 

Luz

Espelho

Água

Vida

Sorriso

Ponte

Mar

Casa

Porque és

partilha

És

meu amigo.


FÁTIMA GUIMARÃES 

15.10.21

Escrevências Inventosas

 


Pelo minguado espaço da esperança eu enxerguei o mundo. O céu parecia nebuloso, longe de ser alcançado pelo meu olhar aquebrantado, despido de coragem. Acordei sozinha, vi a pele ser rasgada pela frieza do abandono, as horas pirraçavam, os ponteiros teimavam em não sair daqueles instantes que perpetuavam a lenta agonia. Caminhei com uma fadiga que peava as forças de minhas pernas, senti o tempo pesar nas panturrilhas cansadas de tantas desistências.

A porta emperrada do guarda-roupa, a escrivaninha desarrumada, a penteadeira repleta de frascos vazios – a vida se fazia inteiramente desabitada de mim. O robe cobria meu corpo, através do tecido senti a pele quente -, mas dentro de mim o silêncio reverberava e se transformava num frio intenso, congelante. Inútil saber que lá fora o dia me chamava, ordenava que as janelas fossem escancaradas e que as cortinas esvoaçassem, dançassem um ballet cheio de ternura – eu permanecia prostrada na apatia de uma solidão que limitava minha dança – travei a vida em um “grand plié”, difícil retornar e voar para a imensidão de um “Jeté” que me liberte de todas as barras.

Na escrivaninha as bolas de papel amassado emprestavam um ar de revolta, minhas mãos se recusavam a escrever o que não transformasse o mundo, rejeitavam-se a perpetuar pequenas bobagens, filhas de palavras sem sentido. Carecia gritar no papel que as traças carcomiam pequenas ternuras escondidas embaixo da poeira que camuflava os livros de poesia - alisava as lombadas cheias de pó e deixava o quarto ser invadido por um súbita dança - na luz, que entrava pela fresta ousada, antigas dores pairavam no ar.

Naquela hora vi uma coragem insana voar na claridade intrusa, escuridões antigas se recolheram atrás do velho guarda-roupa, as panturrilhas cansadas começaram a bombear a vida de volta para mim – andei, capenga ainda, mas inteira de minhas certezas. Na mão levei a poesia já livre da poeira de solidões passadas e, sem abrir o livro, minha cabeça leu o que estava escrito naquelas páginas: “As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios” – pelo minguado espaço da esperança eu enxerguei o mundo.


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